Entramos no segundo ano do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff e continuam correndo paralelamente dois movimentos que visam a retirar a presidente do cargo: o impeachment, que levaria o vice-presidente, Michel Temer, a assumir a presidência e a exercê-la até o final do mandato, em 31 de dezembro de 2018, e a cassação do mandato, via Justiça Eleitoral, por irregularidades no financiamento da campanha, o que, em tese, implicaria a cassação da chapa eleita, vale dizer da presidente e do seu vice.
A matéria em questão é tratada, com parcimônia incomum, em quatro artigos e três parágrafos da Constituição Federal de 1988, como segue:
“Art. 79. Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente.
Parágrafo único. O Vice-Presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o Presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais.
Art. 80. Em caso de impedimento do Presidente e do Vice-Presidente, ou vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal.
Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.
§ 1º – Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.(Grifei).
§ 2º – Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.
Art. 82. O mandato do Presidente da República é de quatro anos e terá início em primeiro de janeiro do ano seguinte ao da sua eleição”.
Referi-me à parcimônia inusitada do texto constitucional nesta matéria tão sensível, visto que ele é reconhecidamente prolixo em inúmeros outros temas de importância muito menor. Não que esteja errado por ser conciso; ainda mais porque, no caso, aliou-se precisão à concisão. Foi dito tudo em poucas palavras, não deixando margem a dúvidas. Mas deixa preocupações.
De fato, ocorrendo a segunda hipótese de vacância mencionada no início, qual seja a determinada pela Justiça Eleitoral, há, desde logo, a certeza de que a presidência será exercida interinamente pelo presidente da Câmara dos Deputados, que convocará novas eleições para ambos os cargos, a serem realizadas no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data em que se configurar a vaga, vale dizer, do trânsito em julgado da decisão judicial. Isso, no caso do caput do art. 81 acima transcrito. Porque, se ocorrer a situação descrita no seu parágrafo 1º, isto é, se a vacância se der após 31 de dezembro do corrente ano, o pleito será realizado no prazo de 30 dias, e será indireto, apenas no âmbito do Congresso Nacional, como nos velhos tempos dos governos militares.
Ora, como sabemos, a presidência da Câmara é exercida atualmente pelo polêmico deputado Eduardo Cunha, ele próprio às voltas com graves denúncias que lhe podem custar o cargo e o mandato. Já temos aí um elemento complicador. Há compreensível insegurança em mergulhar de cabeça num processo cujo condutor natural é alguém tão cheio de explicações a dar e sem nenhuma isenção, já que, ao fim e ao cabo, se conseguir salvar a própria pele, poderá vir a ser o principal beneficiário de um eventual afastamento da presidente.
Além disso, cresce a impressão de que falta base jurídica ao impeachment, embora sobrem razões políticas. Disso resulta que o jogo, no Congresso Nacional, será apenas para desgastar a presidente e seu partido; para “sangrá-los”, no jargão nada delicado dos políticos.
Há uma forte possibilidade de que a partida decisiva seja jogada no “tapetão” do Tribunal Superior Eleitoral (que dentro de dois meses passará a ser presidido pelo ministro Gilmar Mendes), com recurso inevitável ao Supremo Tribunal Federal, qualquer que seja o resultado na corte eleitoral.
Com a quantidade absurda de recursos admitidos pelo nosso sistema processual e a natural complexidade de um processo dessa natureza, a decisão definitiva, transitada em julgado, dificilmente acontecerá até o próximo dia 31 de dezembro. Portanto, se sobrevier o acolhimento da denúncia promovida perante aquela corte pelo principal partido de oposição, poderemos ter uma eleição indireta para presidente e vice-presidente da República, com mandato-tampão (menos de 2 anos), sem que se possa falar em golpe, retrocesso ou o que seja. Afinal, é o que está escrito com todas as letras na nossa constituição cidadã.
Podemos estar mais perto disso do que se imagina. Com o desenrolar da operação Lava Jato e com suas delações premiadas, hoje já se avolumam evidências de que vultosas contribuições para a campanha presidencial de 2014, mesmo que formalmente legais, saíram, na verdade, dos cofres de empresas estatais, de fundos de pensão e de obras públicas. Uma única prova mais contundente neste sentido será suficiente para ser cassado o mandato da chapa presidencial, com base na lei eleitoral. Por muito menos, já foram cassados vários mandatos de governadores, prefeitos e parlamentares por esse Brasil afora. Há farta jurisprudência sobre caracterização de abuso de poder econômico em eleições. A novidade é que uma ação desta natureza nunca foi promovida contra um presidente da República.
Por outro lado, não vejo como possa prosperar o argumento, já esboçado pela defesa do vice-presidente Michel Temer, de que os candidatos do próprio partido denunciante também receberam contribuições das mesmas empresas investigadas na Lava Jato. É verdade. Mas, ao contrário dos candidatos da situação, aqueles não tinham comando sobre as empresas e órgãos que liberavam recursos supostamente ilícitos que, depois, se transformavam em contribuições de campanha. Pela sua própria natureza, este tipo de delito só pode ser cometido por quem tem controle sobre a máquina pública, o que não é o caso dos candidatos de oposição, pelo menos no que diz respeito a órgãos e empresas públicas federais.
Enfim, o que me move, aqui, é apenas chamar a atenção para a possibilidade concreta de termos, quem sabe no início do ano que vem, uma eleição indireta para presidente da República. Quem diria, hein? Depois de tanta luta para recuperar o direito de votar para presidente…
Vale destacar, também, o estranho silêncio da classe POLíTICA e da grande mídia a respeito disso. Já há até um projeto de lei, pronto para ser votado, para regulamentar as eleições indiretas, no caso previsto no art. 81, parágrafo 1º, da CF, tudo tramitando sem alarde. Parece haver um consenso não declarado no sentido de empurrar qualquer solução da crise para 2017, de modo a possibilitar quem sabe um “conchavão”, que leve a um governo de transição, sem passar pelo escrutínio popular.
Resta saber, apenas, se há condições políticas para algo ao mesmo tempo tão ousado e tão anacrônico. Parece claro que não há, o que explica a forma dissimulada como o assunto vem sendo conduzido.
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Para quem sonha com um grande empresário ou um nome acima de qualquer suspeita assumindo a presidência, para tentar recuperar a credibilidade do Governo, aqui e lá fora, talvez o único caminho viável seja realmente a velha eleição indireta, não fosse o fato de que, para tanto, ficaremos na dependência do espírito público da maioria absoluta dos nossos parlamentares. Os mais céticos dirão que é preciso ser um otimista incorrigível para acreditar nisso…
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Somente ontem, ouvi as declarações do presidente da FIESP, Paulo Skaf, em entrevista coletiva, justificando a decisão tomada por aquela entidade, em meados de dezembro último, de passar a apoiar oficialmente a tese do impeachment. Fiquei atônito. Todos os argumentos utilizados podem até ser verdadeiros, e seriam, com certeza, motivos mais do que suficientes para derrubar o Governo, se vivêssemos no Parlamentarismo. Mas nenhum deles oferece a mais remota base legal para o impedimento da presidente, no sistema presidencialista que escolhemos na Constituição e confirmamos em plebiscito. Não dá para se ter o melhor de dois mundos.
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