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Quem semeia vento…

Quem semeia vento…

Na semana passada, uma notícia passou quase despercebida – em meio a tantos acontecimentos políticos que empolgam a atenção da sociedade brasileira nos últimos tempos. Ela veio de Chicago (Illinois, USA), terra de vento gelado, que sopra do Lago Michigan, divisa com o Canadá. Mas o tempo esquentou por lá.

Um comício de campanha de Donald Trump, nas primárias do Partido Republicano, com vistas ao pleito presidencial de 8 de novembro próximo, teve de ser suspenso pelos próprios organizadores, por motivo de segurança. Cerca de 8 mil pessoas decidiram impedir a realização do ato, gritando palavras de ordem violentas contra o candidato e se envolvendo em confronto físico com os apoiadores dele.

Como se sabe, Trump é um empresário norte-americano que atua em diversos setores (imobiliário, cassinos, campos de golf e vários outros) e tem forte presença na mídia, há muitos anos, por deter os direitos, entre outras, de atrações como o concurso de Miss Universo e o reality show, “O Aprendiz”, que andou fazendo algum sucesso também por aqui, com o bordão infame: “você está demitido!”.

Dono de uma fortuna de U$ 4 bilhões, segundo a revista Forbes (ou U$ 10 bilhões, segundo ele mesmo), vai completar 70 anos em 14 de junho do corrente ano. E, agora que está com a vida ganha, resolveu ser presidente da República do seu país, com um programa ultraconservador, anti-imigração, antimuçulmano, racista e populista, explorando temas que mexem com o orgulho ferido do povo americano, como revela o slogan de sua campanha: “make America great again!”. Conta com o apoio do Tea Party e dos demais setores ultradireitistas do Partido Republicano.

Além de carregar essas bandeiras altamente polêmicas, representando forte ameaça a vários grupos minoritários, Trump, com sua figura arrogante, não perde oportunidade de comprar brigas com todos eles ao mesmo tempo, fazendo propostas chocantes, como a construção de um muro na fronteira com o México; a expulsão de milhões de “ilegais”, sobretudo latinos; a proibição de entrada de muçulmanos em território americano; a revogação do programa de saúde “Obama care” e outras iniciativas do atual governo no campo social.

No começo, ninguém se preocupou muito. Alguém com um programa desses com certeza seria barrado pela própria estrutura partidária. Mas, para a surpresa de muitos, mesmo não contando com a simpatia da cúpula do partido, ele veio crescendo ao longo da campanha e, hoje, é apontado como o favorito nas primárias. Tudo indica que ele vai mesmo para o confronto com a provável candidata dos democratas: Hillary Clinton, nas eleições de novembro.

Por isso é que, agora, ele começa a encontrar resistências mais organizadas e agressivas. Com certeza, o provocador Trump conseguiu fazer milhões de inimigos, além de aumentar brutalmente os custos de segurança da sua campanha. Mesmo assim, aposto que muitos outros eventos acabarão tendo de ser cancelados, por razões semelhantes às que determinaram a suspensão do comício de Chicago. Trump certamente vai responsabilizar os radicais do outro lado; aliás já o fez. Mas está muito claro que a culpa é dele, que foi ele quem criou esse ambiente de confronto irreversível.

 “Quem semeia vento colhe tempestade”. O ensinamento é bíblico – do velho testamento (Oséias,8:7). Donald Trump deve obter a indicação republicana e até pode ganhar de Hillary (as pesquisas mostram, por enquanto, uma pequena vantagem para a representante democrata). Se eleito, entretanto, não conseguirá fazer um governo produtivo, ou sequer cumprir algumas de suas polêmicas promessas de campanha. Mas será capaz de produzir turbulências globais e manter o mundo todo em permanente tensão durante pelo menos quatro anos.

Preocupações diante dessa ameaça começam a surgir na Europa, Ásia, América Latina, inclusive entre aliados históricos dos EUA.

Sempre achei que, em razão do peso daquele país na economia global e do seu protagonismo militar, a rigor, todos os habitantes do planeta deveriam poder votar na eleição presidencial americana. Utopia, eu sei, mas alguém pode imaginar o grau de risco, por exemplo, de um encontro entre Trump e Vladimir Putin? Ou a sua participação numa cúpula para tratar de assuntos do Oriente Médio?

Instalar um homem com o seu perfil no salão oval da Casa Branca, com acesso ao botão vermelho do arsenal atômico, é uma insanidade. Já chega a aberração da Coréia do Norte. Felizmente o mundo começa a perceber isso, assim como parcelas da população americana e, até, do conservador Partido Republicano. Ainda há uma chance de se evitar que esse pesadelo se materialize.

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Essa derrapada de uma democracia estável, de mais de 200 anos, como a norte-americana, deixa uma lição que se aplica perfeitamente ao atual momento político brasileiro: o ódio pode ser eficaz para destruir, mas não constrói nada. É preciso estar atento ao ambiente que vai sendo criado em nosso país, por conta da busca de um atalho para pôr fim à crise em que mergulhamos.

Qualquer solução que nasça envolvida nesse clima de confronto não poderá gerar soluções boas e duradouras. Embora traumática, a substituição da presidente Dilma por quem quer que seja é o menor dos problemas. E o maior nem é definir quem governará, mas como governará; segundo quais regras. Porque, mantida a atual estrutura de poder, ausente uma ampla reforma e administrativa, assistiremos a mais uma tentativa fracassada de o Brasil encontrar o rumo definitivo do primeiro mundo, a salvo de novos retrocessos.

Milhões de jovens que chegam agora à idade adulta não conseguem avaliar o quanto progredimos nos últimos 20 anos. Têm pressa. Com razão, querem mais; muito mais. “Fome de mudança”, dizia o cartaz agitado pelo amigo Roberto Mira Jr em plena Av. Paulista, na manifestação de domingo último, 13/3.

É natural que tenham grande entusiasmo pela operação Lava Jato e pelo juiz Sérgio Moro. Afinal, em meio a tantas notícias ruins, representam uma das poucas novidades a gerar esperança de dias melhores.

Mas é preciso lembrar que não haveria Lava Jato sem os avanços conquistados na Constituinte de 88, principalmente no que diz respeito à autonomia do Ministério Público. E essa operação não teria a dimensão e as consequências que acabou adquirindo não fossem as leis aprovadas nos últimos anos (ficha limpa, anti-corrupção, delação premiada etc.).

Tudo isso foi obtido com muita negociação, o que implicou um trabalho político competente, muito mais sutil e exaustivo do que o confronto puro e simples que se instalou nas redes sociais e que transborda para as ruas.  

Dentro de pouco tempo, inevitavelmente, haverá uma solução para o impasse político. E aí se dirá que o Brasil começa a mudar. Não. Ele já vem mudando há muitos anos. Depois da redemocratização, vieram o Plano Real, a lei de responsabilidade fiscal e muito mais, além do conjunto de leis contra a corrupção a que já me referi.

É importante, sem dúvida, encontrar uma forma legal, não golpista, de substituir quem não esteja à altura das exigências do momento presente. Mas ainda mais importante é aperfeiçoar as regras do jogo, as instituições e a organização do Estado brasileiro, para eliminar as causas da corrupção endêmica que nos persegue desde sempre e que chegaram a níveis insuportáveis nos últimos anos.

E isso não se obtém apenas com palavras de ordem em passeatas, nem muito menos aumentando o nível dos insultos nas redes sociais, que são instrumentos formidáveis para fomentar a circulação de ideias e o debate em torno delas.

Os jovens que estão à frente das grandes manifestações que sacodem o Brasil não se dão conta, talvez, do poder que adquiriram a partir do manejo dessas novas ferramentas tecnológicas. Quem lhes diz isso é alguém que fez política nos anos 60, em plena ditadura, tendo como arma um velho mimeógrafo, do qual saiam manifestos que eram distribuídos de mão em mão.  

Mas é preciso que tenham consciência, também, de que as redes sociais, paradoxalmente, tem sido veículo do envenenamento do ambiente político, quando são usadas por todas as partes – com alcance, instantaneidade e velocidade inusitadas –, para gerar factoides, triturar reputações e induzir ao pensamento único.

Isso, que pode fazer todo o sentido agora, quando se está empenhado em ganhar a guerra, em breve se revelará um grave equívoco, quando, superada esta fase, estivermos diante da tarefa, infinitamente mais complexa, de estabelecer novas alianças e novos consensos, para construir, a muitas mãos, o país que queremos ser.

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Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

Quem semeia vento…

Muita calma nessa hora…

Analisar com isenção os acontecimentos, deixar a intuição fluir livremente (e acreditar nela) é, muitas vezes, mais revelador do que qualquer informação privilegiada. No último sábado, 5 de março – em meio às discussões que se seguiram ao episódio da condução coercitiva do ex-presidente Lula, postei o seguinte comentário no grupo de whatsapp NTC&L, do qual participam algumas das principais lideranças do TRC:

Quanto ao Lula, acho que, no fundo, não querem nem prendê-lo (preso, ele seria um problema permanente). Para o fim a que se destina toda essa movimentação , judicial e midiática, basta torná-lo inelegível, como ‘ficha suja'…

De onde tirei isso? Não sei. Nunca li nada a respeito, nem ouvi de ninguém esta informação. Provocado pela intensa troca de opiniões sobre o atual quadro político, e pela evidência de que o pessoal da Lava Jato ficou perturbado com a reação pirotécnica do ex-presidente (que muitos julgavam politicamente morto), essa possibilidade brotou de repente na minha cabeça. E senti necessidade de registrá-la naquele grupo.

Pois bem, convido o leitor a ler a matéria postado na madrugada desta 2ª feira pelos jornalistas Flávio Ferreira e Bela Megale, no UOL/Folha, sob o título “Lava Jato cogita abrir ação que impediria candidatura de Lula” (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/03/1747080-lava-jato-cogita-abrir-acao-que-impediria-candidatura-de-lula.shtml), que confirma, ipsis litteris, o caminho que vislumbrei:

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ser alvo de ação civil de improbidade administrativa na Operação Lava Jato, que tem como uma das punições a proibição de disputar eleições.

Lula pode ser acusado nesse tipo de processo caso fique comprovado que empreiteiras envolvidas no esquema de corrupção na Petrobras pagaram custos de obras do sítio frequentado por ele em Atibaia (SP) no final de 2010, quando ainda era presidente, para beneficiá-lo ilegalmente.

Na Lava Jato, já estão em curso cinco ações de improbidade com pedidos de decretação de inelegibilidade por até dez anos contra (outros) acusados. A Folha apurou que integrantes da força-tarefa do Ministério Público Federal já consideram a possibilidade de que Lula seja alvo de uma causa deste tipo, no âmbito da 24ª fase da Lava Jato, na qual são investigados supostos atos de corrupção e lavagem de dinheiro ligados à propriedade rural.

Ora, uma ação civil de improbidade administrativa não pode resultar em pena de prisão; quando muito, em caso de condenação, dela decorrerá a obrigação de ressarcimento ao erário, se for o caso. Mas pode resultar em inelegibilidade, com base na “Lei da Ficha Limpa”.

Impossível garantir, de antemão, que isso acontecerá. Mas não vejo uma discussão consistente na mídia a respeito dessa possibilidade. Aliás, algo muito parecido aconteceu com a questão da eleição indireta para presidência, em caso de cassação pelo TSE – que foi objeto de outro artigo (sob o título: “Como nos velhos tempos”), que publiquei neste blog em 16/02/16. Por mera coincidência, dias depois disso começaram a sair, timidamente, algumas notas, na grande imprensa, sobre a possibilidade concreta de virmos a ter um pleito indireto para presidente da República, culminando, no último domingo, com um certeiro comentário do brilhante jornalista Elio Gaspari (http://m.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2016/03/1746854-moro-deu-a-lula-o-papel-de-coitadinho.shtml?mobile).

Não faço este registro para postular “furo” ou precedência. Não sou jornalista; não vivo de dar ou comentar notícias. O meu objetivo, aqui, com essas observações, é apenas o de instar o leitor a desarmar o seu espírito, a sair do tiroteio em que se transformou a repercussão dos fatos revelados quase semanalmente pela Operação Lava Jato. A gravidade do momento exige equilíbrio; não combina com leviandade, nem com a radicalização fútil que tomou conta das redes sociais, nem, menos ainda, com o enviesamento flagrante que domina o noticiário da grande mídia.

O exercício que tenho procurado fazer (e que tem dado alguns frutos interessantes, como os relatados acima) é o de me colocar diante das notícias sempre com espírito crítico, tentando entender os fatos e as intenções por trás delas, sem me emocionar com os resultados e, sobretudo, deixando um espaço generoso para que a intuição ajude a antever o possível rumo dos acontecimentos.

Você não precisa acreditar nisso, nem concordar com isso. Mas, em todo caso, não convém deixar-se envenenar com a boataria infernal e com a avalanche de notícias plantadas pelas forças em confronto, para conquistar corações e mentes.

Exercer a cidadania com discrição e comedimento, manifestar opinião e protestar contra tudo o que conspire contra o normal desenvolvimento dos negócios, se possível apontando soluções e alternativas, é mais que direito; é dever do empresariado. Mas isso não se confunde com a busca de um protagonismo ruidoso e perigoso, que muitas vezes vejo ser defendido por empresários, com ardor juvenil.

 A luta pelo poder é cruel e sem limites. Quem não tem poder político – mas tem o que perder –, deve redobrar o cuidado antes de se meter em terreno que não conhece, manejando armas que não domina.

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Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

Quem semeia vento…

Educação: transporte para o futuro

slogan que serve de título a esta matéria foi lançado há muitos anos pelo Sindicamp (Sindicato das Empresas de Transporte de Carga de Campinas e Região), sob a presidência do amigo Valter Boscato. Tempos depois, a CNT (Confederação Nacional do Transporte) utilizou-o em diversas ações. Eu mesmo lancei mão dele em palestras que andei dando sobre o tema, que sempre foi uma das minhas maiores preocupações.

Tenho sustentado que as nossas deficiências em Educação são muito mais dramáticas do que as que temos na infraestrutura de transporte e logística. A diferença é que estas podem ser superadas, talvez em 10 anos, contados de quando tivermos recuperado algumas condições fundamentais, tais como: vontade , competência gerencial e capacidade de atrair e mobilizar recursos privados. Já a fragilidade do nosso sistema educacional vem comprometendo gerações inteiras e, mesmo com vontade política, competência gerencial e todo dinheiro do mundo, vamos precisar de uma ou duas gerações para começar a melhorar. Até lá, vamos continuar levando goleadas humilhantes nos rankings internacionais de universidades e nas “olimpíadas” de matemática, física, química etc.

Ninguém discute que é preciso promover mudanças radicais no modo como ensinamos e preparamos para a vida as nossas crianças e os nossos jovens. E aqui não estamos falando de dinheiro. O Brasil já gasta mais com educação do que muitos países ricos, embora o gasto per capita ainda seja pequeno (v., a propósito, http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/09/140908_relatorio_educacao_lab). E o salário do professor também é muito baixo: US$ 14,8 mil/ano (calculado em paridade de poder de compra), menos do que se paga na Turquia e Chile, por exemplo. E muito abaixo de países como a Suiça (que paga quase 5 vezes mais) e a Holanda (4 vezes mais).

Claro que é necessário melhorar a qualidade do ensino, o que significa ter um currículo mais adequado, melhores condições de trabalho para os professores (média de 32 alunos por classe, contra 27 no Chile e 8 em Portugal), ter mais professores, mais bem pagos. É exatamente nisso que mora a grande dificuldade. Onde conseguir professores capacitados para ensinar mais de 50 milhões de alunos? Não se pode esquecer que grande parte dos potenciais mestres provém dessas últimas gerações que vêm tendo deficiências em sua formação. Ninguém pode ensinar o que não sabe.

Essas questões, que sempre me preocuparam, voltaram a me assombrar, quando li um pequeno artigo de RUY CASTRO, sob o título “Expulsos da história” (FSP, 26/02/16, pág. A-2), que me fez lembrar que nada é tão ruim que não possa piorar. E piorar muito.

Diz ele, ao comentar a “Base Nacional Comum Curricular”, que vem sendo gestada pelo Ministério da Educação:

Se aplicada o Brasil virará as costas ao componente europeu de suas origens e abraçará com exclusividade o seu lado indígena e africano (…).

Pelas novas diretrizes, evaporam-se o Egito, berço da urbanização, do comércio e da escrita, a Grécia, do teatro, da poesia e da filosofia, e a Roma da prática jurídica, política e administrativa. Ignora-se o surgimento do judaísmo, do cristianismo e do Islã e desaparecem a Idade Média, o Renascimento e as navegações, estas só lembradas para dizer que o europeu escravizou e dizimou. A Revolução Industrial, o Século das Luzes e as conquistas científicas e tecnológicas de ingleses, franceses e americanos, tudo isso deixa de existir.

Quanto ao Brasil, todos os fatos envolvendo portugueses ou luso-brasileiros são desconsiderados. Os novos protagonistas passam a ser os ameríndios, africanos e afro-brasileiros. Bem, se os portugueses são enxotados do currículo com essa sem-cerimônia, considere-se também expulso da história se seus ascendentes forem libaneses, italianos ou japoneses – derramaram o suor em vão por um país que, agora, lhes mostra a língua”.

Não pude deixar de pensar na prática stalinista de reescrever a história, na velha União Soviética. Quem quer que caísse em desgraça perante o regime tinha o nome retirado de todos os documentos, que eram reescritos por causa disso. E tinha também a sua imagem apagada de todas as fotografias e até de pinturas. Uma trabalheira enorme, só para atender aos caprichos dos comissários, até que eles próprios também caíssem em desgraça. E assim a história ia sendo reescrita permanentemente. Se a tal “Base Nacional Comum Curricular” realmente emplacar, o Brasil vai ter de jogar fora todos os livros didáticos escritos até agora. E milhões de outros terão de ser escritos e editados. Quem sabe não se trata de uma medida anticíclica para animar o mercado editorial…

Na verdade, eu já tinha tido referência desse assunto em algum site ou rede social. Mas não dei maior importância porque a notícia me parecia tão absurda que a atribuí às maluquices da internet. Todavia, diante de um texto assinado por um dos maiores escritores brasileiros, além de jornalista de velha guarda – acostumado a apurar a notícia antes de publicá-la – e estampado em espaço nobre de um dos mais importantes jornais brasileiros, não era possível ignorar a ameaça. Mas pensei: a coisa é tão sem pé nem cabeça que amanhã deve vir um desmentido do MEC. Pois não veio até agora, dois ou três dias depois (*). Então fui pesquisar para saber o que havia de verdade em tudo isso.

Descobri que há de fato um vasto documento, elaborado por notórios especialistas da área, que, posteriormente, foi objeto de uma consulta pública, denominado “Base Nacional Comum Curricular” conhecido, nos meios técnicos, pela sigla BNCC. Ele pretende definir o currículo escolar – do curso fundamental e do médio, ano a ano, para todas as matérias obrigatórias, e não só de história – que deve ser respeitado em todo o país, no ensino público tanto quanto no particular. Em respeito às peculiaridades regionais e a outros interesses, admite-se que se possa acrescentar outros conteúdos, além do currículo básico comum que, todavia, deve representar, no mínimo, 60% do que for ministrado.

Aprendi, também, que a existência daquele documento não foi invenção de alguma mente diabólica. Menos mal. De fato, a existência de conteúdos mínimos está prevista no art. 210 da Constituição Federal (“Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. § 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”). Posteriormente, a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional” (Lei 9.394/96) regulamentou a matéria [“Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”. (Redação dada pela Lei nº 12.796/13). Por fim, a Lei 13.005/14 aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE) que, em sua Estratégia 7.1 dispôs: estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa, diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos (as) alunos (as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local.

Agora, aquele documento será revisto pelo grupo nomeado pelo Ministro da Educação para executar este trabalho, levando em conta as contribuições recebidas na consulta pública e, até abril, deverá ser encaminhado ao Conselho Nacional de Educação, para só então passar a ser de observância obrigatória, com certeza sendo implantado paulatinamente.

Li com atenção o tal BNCC, na parte referente a História. Embora tenha carregado nas tintas, talvez de propósito, para provocar reações, a verdade é que RUY CASTRO – cuja história no jornalismo e nas letras nacionais, não permite que ninguém o classifique de direitista, reacionário, “coxinha” ou qualquer coisa do gênero – tem razão quando alerta para o exagero do que se propõe. Ninguém discute que será muito saudável relativizar o caráter francamente eurocêntrico que sempre marcou o ensino de História entre nós, abrindo espaços generosos ao aprendizado da influência dos povos indígenas e africanos que, ao lado do europeu conquistador, marcaram a formação da nossa nacionalidade e da cultura brasileira em praticamente todos os seus aspectos. Mas se erramos até hoje em negligenciar essa influência, nada justifica que passemos a errar pelo oposto.

A leitura das diretrizes constantes do BNCC evidencia uma nítida tendência a minimizar a nossa filiação à civilização greco-romana, aparentemente para defender o protagonismo das vertentes ameríndias e africanas. É evidente que nada disso é neutro, mas tem um claro viés ideológico, o que não se coaduna com o estabelecimento de diretrizes de política educacional.

Se temos falhado miseravelmente em fazer com que o nosso sistema educacional transporte o país para o futuro, é nossa obrigação, ao menos, impedir que ele destrua o nosso passado, tornando o Brasil um enigma indecifrável para as gerações que nos sucederem. Isso seria um crime inominável contra a cultura brasileira.

Para impedir que ele se concretize, com certeza ninguém se animará a sair às ruas. Mas deveria.

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(*) Este artigo já estava escrito quando, na 2ª feira, 29/02, a FOLHA estampou dois grandes artigos sobre o tema (pág. A-3): um defendendo a BNCC, de autoria de Manoel Palácios, secretário de Educação Básica do MEC, e outro criticando a iniciativa, escrito por Marcelo Rede, doutor em história pela Sorbonne e professor de história antiga da USP. Na leitura desses dois textos não encontrei motivo para alterar uma vírgula do que escrevi. Mas fica o registro, para quem quiser saber mais sobre a matéria.

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Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

Quem semeia vento…

Ainda as concessões rodoviárias

Em agosto do ano passado, escrevi um longo artigo, dividido em quatro capítulos, sob o título “PPPs, concessões e futuro”, que continuam disponíveis no blog. A sua motivação foi o excelente “Plano CNT de Transporte e Logística – 2014 (5ª Edição)”, que fez um inventário rigoroso das nossas carências nesta área, para concluir, de forma objetiva e certeira, que: “uma significativa parcela da infraestrutura de transporte, em todas as modalidades, encontra-se obsoleta, inadequada ou ainda por construir. Algumas delas operam no limite ou mesmo acima da sua capacidade, enquanto outras carecem de manutenção” (…) essa situação representa um entrave ao crescimento do país e gera reflexos negativos, como aumento do tempo de viagens, maior custo operacional, aumento do número de acidentes e dos níveis de emissão de poluentes”.

Mas o estudo da CNT não se limitou ao diagnóstico. Num esforço técnico extraordinário, identificou, detalhou e quantificou 2.045 projetos prioritários de infraestrutura de transporte, de todos os modais, nas áreas de cargas e de passageiros.

Quanto custaria eliminar o nosso atraso logístico? O “Plano CNT de Transportes e Logística” responde, numa estimativa conservadora: R$ 987 bilhões, quase 20% do PIB!

Não dá para ter ilusões: com as atuais restrições orçamentárias, contando apenas com recursos públicos, não teremos condições de enfrentar este desafio nem nos próximos 30 ou 40 anos. Acontece que as obras listadas como prioritárias são “para ontem”; já deveriam estar concluídas e servindo à população. Como não estão, o mínimo que se espera é que elas sejam iniciadas e fiquem prontas no menor prazo possível. Para isso, não adianta ficar bradando impropérios ou exercitando preconceitos ideológicos: aquele investimento gigantesco terá de ser feito pela iniciativa privada mesmo, sob a forma de concessões ou PPPs. Ou não será feito.

Isso vale para o governo federal, tanto quanto para os Estados e municípios.

Como se sabe, o atual momento de crise econômica e não é o ideal para atrair investimentos de grande porte para contratos de longo prazo de duração. Além disso, as grandes empresas brasileiras, investidoras tradicionais nesta área, estão muito ocupadas com os desdobramentos, que parecem não ter fim, da operação Lava Jato. Mas é este o desafio a superar. Ou fazemos isso logo, ou prolongaremos indefinidamente esse momento triste, de governança medíocre, onde tudo se torna negativo, até o crescimento.

Além de vencer os preconceitos já mencionados, é preciso superar também a reação emocional de parcelas da sociedade, inclusive no setor de transportes, que tendem a ver a cobrança de pedágio, não como contraprestação de investimentos e prestação de serviços relevantes, mas como uma espécie de sinecura [que pode até estar presente em algumas situações, mas não invalida, nem deve interditar, a celebração desses contratos públicos, na forma da lei].

Este sentimento difuso e equivocado, por óbvio, não contribui para a criação de um ambiente propício às concessões e PPPs. E colabora para aumentar a sensação de risco do negócio, o que conspira contra a desejada modicidade das tarifas.   

 Volto a este tema por conta do primarismo com que ele foi veiculado pelo jornal FOLHA DE S.PAULO, na sua edição de domingo (“Cotidiano”, 21/2), com direito a chamada de primeira página: “Alckmin planeja 25 novos pedágios em estradas paulistas”.

É incrível que, depois de mais de 20 anos de convívio com as concessões rodoviárias, prevaleça nas redações esta visão reducionista. Só faltou pedir a um dos competentes cartunistas do jornal, uma ilustração mostrando o governador trancado do palácio, com seus assessores, numa sala sombria, pregando alfinetes no mapa de São Paulo, a significar as tais 25 novas praças de pedágio, numa trama sinistra para prejudicar a população, quando, na verdade, o de que se trata ali é de algo muito mais complexo, estratégico e essencialmente positivo.   

Ninguém planeja implantar praças de pedágios, nem a quantidade delas tem qualquer significado importante, sem que se saiba, ao menos, onde serão instaladas, qual o valor da tarifa e qual a quantidade de quilômetros esta tarifa vai franquear ao usuário. Aliás, está na hora de os nobres jornalistas aprenderem que o jeito certo de avaliar e comparar tarifas de pedágio é por quilômetro e não por praça.

Por outro lado, muitas vezes é melhor ter mais praças de pedágios porque, se bem localizadas, elas evitam evasão e garantem uma quantidade maior de usuários pagantes e, assim, uma redução da tarifa resultante. “Onde todos pagam, todos pagam menos”. Ao contrário, quando muitos deixam de pagar o pedágio, porque a posição das praças permite um tráfego significativo sem pagamento, os que pagam, certamente arcarão com um ônus muito maior. “Não existe almoço grátis”. Alguém sempre pagará pelos que andam de graça.   

A notícia que não foi dada; ou que foi dada da pior forma possível – porque errada e porque aparentemente calculada para causar mal-estar na população – é a de que o governo do Estado planeja realizar novas concessões, isto é, que tais e quais novos trechos rodoviários terão a sua gestão delegada à iniciativa privada, o que, insisto, é essencialmente positivo, porque sinaliza que em breve  novas rodovias concedidas apresentarão melhora substancial, com mais conforto, segurança e redução de custos para os usuários.  

Redução de custos, sim, por mais que isso possa chocar muita gente.

Depois de ter vivido a primeira fase das concessões dentro de empresa de transporte, gerindo frotas e acompanhando custos operacionais, não tenho a menor dúvida em afirmar que, até no Estado de São Paulo, em que as tarifas são reconhecidamente mais elevadas em razão do modelo adotado, a relação custo/benefício da concessão é, no final, muito favorável ao usuário (sem prejuízo de poder ser, também, um bom negócio para o concessionário – em algumas concessões mais do que em outras).

Participei também, durante as últimas duas décadas, de dezenas de reuniões de grupos paritários (comissões tripartites) de concessões, entendendo a lógica do sistema e aprendendo os “pulos do gato”. E, por fim, fui conselheiro da ARTESP, agência reguladora estadual, e tive muitas discussões no âmbito da ANTT, já como presidente da NTC&Logística.

É com essa visão ampla, tendo tido a oportunidade de conhecer a realidade a partir do ponto de vista de cada um dos envolvidos: do usuário particular, do transportador, do concessionário e do poder público, é que não pratico “achismo” nesta matéria. Tenho, isso sim, convicções muito firmes e fundamentadas, no sentido de que, a depender de alguns ajustes que o modelo ainda comporta, a delegação da gestão da infraestrutura de transporte para a iniciativa privada é a solução mais indicada em praticamente todas as situações.

E é por ter certeza disso, que fico realmente muito irritado quando vejo tanta desinformação. É um absurdo que se continue tentando vender como má notícia o que, na verdade, é a única solução que nos resta para ainda poder sonhar com uma retomada de crescimento, sem que ela se converta, mais uma vez, em “voo de galinha”. Porque quase 1 trilhão de reais (ou um quarto de trilhão de dólares) de investimento privado, nacional e estrangeiro, levanta e anima qualquer economia.

É, além de tudo, o mais formidável programa anticíclico que se poderia imaginar, sem que o governo precise gastar nada – ao contrário, reduzindo os seus gastos e aumentando as suas receitas, por conta da reativação da atividade econômica.

É o antídoto perfeito para a nossa “tempestade perfeita”…

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Ainda sobre a “CPMF compensável”

Estou devendo ao amigo Paulo Roberto Guedes uma resposta ao longo e-mail que me remeteu contestando a sugestão suscitada no meu artigo de duas semanas atrás (A CPMF “fora da caixa”).

Ele achou a ideia interessante, mas considera a tentativa de recriação deste tributo “um erro e não será solução para quaisquer dos problemas brasileiros atuais (…) pois além de gerar um desgaste extraordinário junto à sociedade e um problema ainda maior no Congresso Nacional (…) irá aumentar os custos de produção e tirar dinheiro de um mercado já enxuto e sem recursos para o consumo e o investimento”.

E prossegue, lembrando que a nossa economia está em recessão há pelo menos dois anos e que caminha para mais uma queda do PIB em 2016, o que provocou a erosão da receita tributária. ”Portanto, agora, espera-se que o aumento da receita se dê através do crescimento da economia e não através do aumento das alíquotas ou de novos impostos”, mesmo porque a carga tributária já está muito elevada, devendo chegar a 36% do PIB neste ano.

Além disso, lembra que, segundo cálculos do próprio governo, o potencial arrecadatório da CPMF seria de R$ 35 a R$ 40 bilhões, o que representa muito pouco frente ao déficit primário de 2015 e o que se espera para 2016.

Em seguida, toca no ponto em que, aliás, não há qualquer divergência entre nós, qual seja o do crescimento descontrolado da relação dívida/PIB, que foi objeto do meu antepenúltimo artigo (“Como previsto, os juros arruinaram a relação dívida/PIB”), para concluir que a única solução para a gravíssima crise em que nos encontramos passa pela redução fortíssima dos gastos públicos (inclusive com eliminação das vinculações constitucionais e a redefinição do tamanho do Estado brasileiro) e pela retomada do crescimento econômico. Estamos absolutamente alinhados em tudo isso.

Vou pular a parte política da mensagem do Paulo, porque ele não me autorizou a divulgá-la. Quero insistir apenas, por oportuno, que as “pedaladas fiscais” não me convencem como justificativa do impeachment, pelo simples fato de que me soam mais como pretexto, do que propriamente como fundamento jurídico. Note-se que a argumentação neste sentido vem sempre acompanhada da questão da perda da credibilidade e das condições para governar, muito na linha da posição defendida recentemente pela FIESP, que já critiquei aqui; fala-se em impeachment, mas o que se busca, de fato, é um “voto de desconfiança”, solução típica do sistema parlamentarista. No nosso presidencialismo, consagrado pela Constituição e por dois plebiscitos, isso não é possível, senão praticando gravíssima ofensa ao estado de Direito. Ora, se o que se quer, entre outras coisas, é recuperar a credibilidade perante o mundo, não é bom ir por este caminho.

Mas, voltando à ideia da “CPMF compensável”, o que sustentei é que, com este ou com qualquer outro governo, vamos precisar fechar as contas, com redução de despesas e, inevitavelmente, com alguma forma de aumento de arrecadação, para compensar a grande queda da receita tributária, pelos motivos já comentados. Porque, se isso não for feito, ninguém tenha dúvida, as contas vão acabar fechando do mesmo jeito, só que pela via da inflação, que é, de todas, a pior solução.

O que talvez tenha faltado ao Paulo perceber e valorizar é que, na proposta de “CPMF compensável”, não haverá aumento de carga tributária para quem já paga seus impostos (por força da compensação), mas um aumento de arrecadação proveniente de um tributo praticamente insonegável, que alcança todas as atividades informais, inclusive criminosas, que, segundo sempre se sustenta, corresponde quase a um outro Brasil, oculto, que, não obstante, passaria a pagar imposto.

Feito assim o registro da opinião divergente, e mesmo compreendendo, respeitando e agradecendo os argumentos do amigo e leitor assíduo deste blog, não encontro razões para modificar a posição que defendi anteriormente, sempre lembrando que, talvez, não valha a pena levar tão a sério sugestão nascida numa reunião de entidade de classe, que não está posta, por ora, na agenda do governo, nem na do Congresso Nacional. Eu a registrei naquele artigo porque a considerei realmente muito interessante e numa homenagem ao amigo e ex-presidente da NTC, Oswaldo Dias de Castro.

Não se perca de vista, entretanto, que daqui a pouco tempo, a proposta do Governo de recriação da CPMF entrará em discussão no Congresso. Do jeito que foi apresentada dificilmente passará, mas a gente sabe como essas coisas acontecem por lá, na hora de votações importantes. De repente, algo na linha sugerida pelo Oswaldo pode vir a se constituir, quem sabe, em saída honrosa para todos.

Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

Quem semeia vento…

Como nos velhos tempos

Entramos no segundo ano do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff e continuam correndo paralelamente dois movimentos que visam a retirar a presidente do cargo: o impeachment, que levaria o vice-presidente, Michel Temer, a assumir a presidência e a exercê-la até o final do mandato, em 31 de dezembro de 2018, e a cassação do mandato, via Justiça Eleitoral, por irregularidades no financiamento da campanha, o que, em tese, implicaria a cassação da chapa eleita, vale dizer da presidente e do seu vice.

A matéria em questão é tratada, com parcimônia incomum, em quatro artigos e três parágrafos da Constituição Federal de 1988, como segue:

“Art. 79. Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente.

Parágrafo único. O Vice-Presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o Presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais.

Art. 80. Em caso de impedimento do Presidente e do Vice-Presidente, ou vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal.

Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.

§ 1º – Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.(Grifei).

§ 2º – Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.

Art. 82. O mandato do Presidente da República é de quatro anos e terá início em primeiro de janeiro do ano seguinte ao da sua eleição”.

Referi-me à parcimônia inusitada do texto constitucional nesta matéria tão sensível, visto que ele é reconhecidamente prolixo em inúmeros outros temas de importância muito menor. Não que esteja errado por ser conciso; ainda mais porque, no caso, aliou-se precisão à concisão. Foi dito tudo em poucas palavras, não deixando margem a dúvidas. Mas deixa preocupações.

De fato, ocorrendo a segunda hipótese de vacância mencionada no início, qual seja a determinada pela Justiça Eleitoral, há, desde logo, a certeza de que a presidência será exercida interinamente pelo presidente da Câmara dos Deputados, que convocará novas eleições para ambos os cargos, a serem realizadas no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data em que se configurar a vaga, vale dizer, do trânsito em julgado da decisão judicial. Isso, no caso do caput do art. 81 acima transcrito. Porque, se ocorrer a situação descrita no seu parágrafo 1º, isto é, se a vacância se der após 31 de dezembro do corrente ano, o pleito será realizado no prazo de 30 dias, e será indireto, apenas no âmbito do Congresso Nacional, como nos velhos tempos dos governos militares.

Ora, como sabemos, a presidência da Câmara é exercida atualmente pelo polêmico deputado Eduardo Cunha, ele próprio às voltas com graves denúncias que lhe podem custar o cargo e o mandato. Já temos aí um elemento complicador. Há compreensível insegurança em mergulhar de cabeça num processo cujo condutor natural é alguém tão cheio de explicações a dar e sem nenhuma isenção, já que, ao fim e ao cabo, se conseguir salvar a própria pele, poderá vir a ser o principal beneficiário de um eventual afastamento da presidente.  

Além disso, cresce a impressão de que falta base jurídica ao impeachment, embora sobrem razões políticas. Disso resulta que o jogo, no Congresso Nacional, será apenas para desgastar a presidente e seu partido; para “sangrá-los”, no jargão nada delicado dos políticos.

Há uma forte possibilidade de que a partida decisiva seja jogada no “tapetão” do Tribunal Superior Eleitoral (que dentro de dois meses passará a ser presidido pelo ministro Gilmar Mendes), com recurso inevitável ao Supremo Tribunal Federal, qualquer que seja o resultado na corte eleitoral.

Com a quantidade absurda de recursos admitidos pelo nosso sistema processual e a natural complexidade de um processo dessa natureza, a decisão definitiva, transitada em julgado, dificilmente acontecerá até o próximo dia 31 de dezembro. Portanto, se sobrevier o acolhimento da denúncia promovida perante aquela corte pelo principal partido de oposição, poderemos ter uma eleição indireta para presidente e vice-presidente da República, com mandato-tampão (menos de 2 anos), sem que se possa falar em golpe, retrocesso ou o que seja. Afinal, é o que está escrito com todas as letras na nossa constituição cidadã.

Podemos estar mais perto disso do que se imagina. Com o desenrolar da operação Lava Jato e com suas delações premiadas, hoje já se avolumam evidências de que vultosas contribuições para a campanha presidencial de 2014, mesmo que formalmente legais, saíram, na verdade, dos cofres de empresas estatais, de fundos de pensão e de obras públicas. Uma única prova mais contundente neste sentido será suficiente para ser cassado o mandato da chapa presidencial, com base na lei eleitoral. Por muito menos, já foram cassados vários mandatos de governadores, prefeitos e parlamentares por esse Brasil afora. Há farta jurisprudência sobre caracterização de abuso de poder econômico em eleições. A novidade é que uma ação desta natureza nunca foi promovida contra um presidente da República.

Por outro lado, não vejo como possa prosperar o argumento, já esboçado pela defesa do vice-presidente Michel Temer, de que os candidatos do próprio partido denunciante também receberam contribuições das mesmas empresas investigadas na Lava Jato. É verdade. Mas, ao contrário dos candidatos da situação, aqueles não tinham comando sobre as empresas e órgãos que liberavam recursos supostamente ilícitos que, depois, se transformavam em contribuições de campanha. Pela sua própria natureza, este tipo de delito só pode ser cometido por quem tem controle sobre a máquina pública, o que não é o caso dos candidatos de oposição, pelo menos no que diz respeito a órgãos e empresas públicas federais.

Enfim, o que me move, aqui, é apenas chamar a atenção para a possibilidade concreta de termos, quem sabe no início do ano que vem, uma eleição indireta para presidente da República. Quem diria, hein? Depois de tanta luta para recuperar o direito de votar para presidente…

Vale destacar, também, o estranho silêncio da classe e da grande mídia a respeito disso. Já há até um projeto de lei, pronto para ser votado, para regulamentar as eleições indiretas, no caso previsto no art. 81, parágrafo 1º, da CF, tudo tramitando sem alarde. Parece haver um consenso não declarado no sentido de empurrar qualquer solução da crise para 2017, de modo a possibilitar quem sabe um “conchavão”, que leve a um governo de transição, sem passar pelo escrutínio popular.

Resta saber, apenas, se há condições políticas para algo ao mesmo tempo tão ousado e tão anacrônico. Parece claro que não há, o que explica a forma dissimulada como o assunto vem sendo conduzido.

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Para quem sonha com um grande empresário ou um nome acima de qualquer suspeita assumindo a presidência, para tentar recuperar a credibilidade do Governo, aqui e lá fora, talvez o único caminho viável seja realmente a velha eleição indireta, não fosse o fato de que, para tanto, ficaremos na dependência do espírito público da maioria absoluta dos nossos parlamentares. Os mais céticos dirão que é preciso ser um otimista incorrigível para acreditar nisso…    

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Somente ontem, ouvi as declarações do presidente da FIESP, Paulo Skaf, em entrevista coletiva, justificando a decisão tomada por aquela entidade, em meados de dezembro último, de passar a apoiar oficialmente a tese do impeachment. Fiquei atônito. Todos os argumentos utilizados podem até ser verdadeiros, e seriam, com certeza, motivos mais do que suficientes para derrubar o Governo, se vivêssemos no Parlamentarismo. Mas nenhum deles oferece a mais remota base legal para o impedimento da presidente, no sistema presidencialista que escolhemos na Constituição e confirmamos em plebiscito. Não dá para se ter o melhor de dois mundos.

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Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.

Quem semeia vento…

A CPMF “fora da caixa”

O país acompanha, em suspense, as gestões do governo federal para recriar a CPMF, apresentada como condição indispensável ao reencontro do equilíbrio fiscal, não só no plano da União, mas também no âmbito das Unidades Federativas – todas em situação difícil e algumas em estado pré-falimentar.  Um tributo sempre muito criticado pelos especialistas, transformou-se, de repente, na única solução para a gravíssima crise fiscal em que nos enredamos.

Há poucos dias, na reabertura dos trabalhos do Legislativo, a presidente Dilma foi ao Congresso Nacional para defender, pessoalmente, a recriação da CPMF e a reforma da previdência, os dois remédios mais amargos da pauta do Governo. Recebeu um ou outro tímido aplauso da sua base de apoio. Mas as vaias foram muito mais fortes.

Aumentar impostos ou instituir novos nunca foi tarefa fácil, em nenhum lugar do mundo. No Brasil de hoje isso é quase impossível, por muitas razões: a carga tributária já é muito alta (mais de 35% do PIB) e a capacidade contributiva da sociedade está cada vez mais comprometida pela recessão, pelo desemprego e pela inflação. Os serviços públicos, nas três esferas da administração, são de péssima qualidade, obrigando a população a buscar soluções privadas (e onerosas) de saúde, educação, transporte, segurança etc. E há, ainda, a percepção generalizada – sobretudo depois do Mensalão e da Lava Jato – de que isso acontece não por falta de dinheiro, mas sim porque é absurdamente catastrófica a gestão dos recursos públicos, que, apesar do nome, são, afinal, recursos privados que, por força de lei, são expropriados pelo Estado. Só não se consegue estabelecer com precisão o peso de cada fonte de desperdício, mas, sendo realista, é impossível não perceber que 50%, ou mais, de tudo o que é arrecadado vai para o ralo da corrupção, ou da incompetência, ou do corporativismo, ou da burocracia, ou de todos esses ralos juntos, e de outros menores.

Seguramente, as vaias que recebeu em pleno Congresso Nacional devem ter dado à presidente Dilma a noção da dificuldade que enfrentará para aprovar uma emenda constitucional [que exige maioria qualificada de 3/5 dos votos, em duas votações, nas duas casas do Congresso] para autorizar a cobrança do novo tributo sobre movimentação financeira, seja em caráter provisório ou definitivo; seja como imposto ou como contribuição.

Chego a imaginar que a ideia de se estabelecer uma idade mínima para aposentadoria; a equiparação, para efeito de contribuição e benefícios previdenciários entre homens e mulheres, entre trabalhadores do campo e da cidade, e entre celetistas e servidores públicos, e outros temas altamente controvertidos, entram nesta história como “bode na sala”, moeda de troca, a ser usada para tentar garantir a aprovação da CPMF.

Não que a reforma da previdência não seja fundamental. Ao contrário, ela é tema importantíssimo que precisará ser enfrentado de maneira corajosa, sob pena de, mais cedo ou mais tarde, inviabilizar a previdência social em nosso país e, por consequência, levar à bancarrota o próprio Tesouro Nacional, o que seria uma tragédia sem precedentes. Mas há uma grande diferença: a CPMF é fundamental para garantir o fechamento das contas DESTE ANO, não só do Governo Federal, mas também dos Governos Estaduais. Já a reforma da previdência é até mais importante, mas não tem o mesmo grau de urgência. Pode esperar mais um pouco. É uma bomba que a atual presidente vai acabar deixando para o seu sucessor desarmar, e arcar com o desgaste correspondente.

Estou convencido de que a estratégia do Governo é agitar os dois objetivos para tentar garantir um deles: a CPMF. E aposto que tanto o Governo quanto os partidos que lhe dão suporte, prefeririam mil vezes não ter de enfrentar mais esse desgaste político, a poucos meses do pleito municipal de outubro próximo. Estão todos atrás de uma proposta que tenha chances reais de ser aprovada no Congresso, que seja menos traumática, sob o ponto de vista político, e que, apesar disso, ajude os governo federal e os governos estaduais a fecharem suas contas em 2016.

Pois numa reunião do Conselho Político da NTC&Logística, realizada no último dia 27 de janeiro, parece ter sido encontrada a fórmula mágica que torna menos amargo o remédio da CPMF. Basta dar caráter compensatório ao novo tributo, de modo que tudo que for arrecadado através dele possa ser descontado de outros tributos federais: Imposto de Renda, PIS/COFINS, CSLL etc., tanto pelas pessoas jurídicas, quanto pelas físicas.

Com isso, seria afastada a objeção de aumento da carga tributária, ao nível individual. A rigor, para quem já paga seus impostos corretamente, não haveria aumento, pois, em tese, tudo o que fosse arrecadado a título de CPMF seria deduzido na apuração de outros tributos, inclusive no SIMPLES. No caso das pessoas físicas, o novo tributo poderia substituir o IR na fonte, pois teria papel semelhante.

Alguém poderá dizer que o Governo não teria interesse nesta solução, já que o seu ganho, em termos de aumento de arrecadação, se houver, seria muito pequeno. Não é verdade. A CPMF tem, reconhecidamente, uma grande vantagem, que é a facilidade de arrecadação, via bancos e instituições financeiras, com sonegação praticamente zero.

Ao contrário do que parece à primeira vista, ganha-se muito: no fluxo de caixa, pela antecipação do recebimento; na contenção da sonegação e da inadimplência, o que não é pouca coisa, num quadro recessivo como o que estamos vivendo; porque passa a cobrar imposto de toda a economia informal, que é quase outro Brasil; porque volta a ter um precioso marcador da atividade econômica de cada contribuinte, e da sua compatibilidade com os ganhos informados (ou não) nos impostos declaratórios, o que torna ainda mais difícil a vida de quem pretenda continuar na informalidade.

E mais: com a introdução do caráter compensatório, abre-se espaço para uma alíquota mais elevada do que os percentuais que têm sido considerados até aqui (0,20%, 0,38%), o que pode projetar um aumento real de arrecadação muito significativo, sem penalizar os mesmos de sempre, isto é, aumentando a base de contribuintes (até mesmo traficantes de droga, contrabandistas, ladrões de carga passam a pagar imposto) e impedindo a evasão, salvo pela via da “desbancarização”. Todavia, por motivos óbvios, quem optar por trabalhar com dinheiro vivo para escapar à tributação da CPMF descobrirá logo que esta é uma péssima ideia…

Embora não seja ainda uma proposta, porque precisa ser lapidada e transformada num projeto, esta é daquelas soluções que merecem ser chamadas de “ovo de Colombo”. E pode converter-se na grande saída para o Governo viabilizar a recriação da CPMF.

Fico à vontade para elogiá-la porque ela não é minha, mas do grande amigo e também ex-presidente da NTC&Logística, Oswaldo Dias de Castro. Do alto dos seus 79 anos, recém completados, ele demonstra que está em plena forma.

Quem, como eu, conviveu com Oswaldo nos anos 70, 80 e 90, quando ele exercia forte liderança no conjunto do setor de transporte, sabe que uma das suas características sempre foi a de buscar saídas inesperadas para problemas complicados. Muito antes de ser cunhada a expressão, ele já se destacava por “pensar fora da caixa”.

Foi o que ele fez, mais uma vez, na já referida reunião do nosso Conselho Político, ao trazer à discussão essa ideia brilhante, com o seu jeito simples, indo direto ao ponto, sem perder tempo com detalhes, como aquele risco despretensioso com que Oscar Niemayer fazia o primeiro esboço dos seus grandes projetos. Agora é dar à ideia o acabamento e a estruturação que ela merece.

É previsível que sejamos criticados por tentar ajudar a viabilizar um novo imposto, quanto deveríamos nos opor fortemente a qualquer tentativa de aumento da carga tributária, seja pela criação de novos, seja pela elevação dos já existentes.

Foi exatamente o que defendi em “A reforma que não houve”,  [http://www.portalntc.org.br/blogdogeraldovianna/a-reforma-que-nao-houve/56228], e “Reformas para mudar de verdade”, [http://www.portalntc.org.br/blogdogeraldovianna/reformas-para-mudar-de-verdade/56311], artigos de outubro e novembro do ano passado, publicados neste mesmo espaço. E continuo achando que devemos mesmo emparedar o Poder Público brasileiro [Executivo, Legislativo e Judiciário; União, Estados e Municípios], mantendo-o a pão e água, obrigando-o a cortar na carne, a eliminar montanhas de gastos inúteis, a acabar com o desperdício criminoso de recursos públicos.

Mas isso não significa apostar no impasse e no caos. Ajudar a por em pé uma solução que alivie as restrições de caixa que comprometem a prestação de inúmeros serviços públicos essenciais em todo o país, e que estimule a retomada de investimentos, aqui e ali, de modo a começar a reanimar a economia: esta parece ser uma iniciativa muito melhor do que ficar no jogo de desgastar o Governo, para apressar o seu fim, jogo no qual o país inteiro acaba pagando um preço muito alto, gerando atraso de vida e prejuízos irrecuperáveis para as pessoas e para os negócios.

Acredito que a CPMF compensável – aqui alinhavada – seja a saída palatável que Governo e Congresso Nacional procuram [inclusive a oposição, que também tem interesse em aliviar a situação em estados que governa] para aliviar o déficit público e, por esta via, começar a conter a inflação e a reduzir gradualmente a taxa de juros.

Como já disse em outro artigo recente, não se trata de dar refresco ao Governo (que, aliás, não tem feito por merecer), mas de dar um refresco ao país. Há o tempo de identificar e punir culpados e há o tempo de construir soluções. Num certo momento, teremos de dar uma pausa nessa “caça às bruxas” que já se estende por mais de dois anos, para tentar construir consensos mínimos que nos permitam realizar a difícil travessia, do atoleiro em que nos encontramos até a terra firme, em que teremos até mais fôlego para continuar a discutir as nossas diferenças de opinião com relação aos rumos do país. De preferência, porém, fazendo como o Oswaldo: “pensando fora da caixa”, desconfiando das soluções óbvias e fugindo de ideias preconcebidas.

Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.