Flat Preloader Icon

Educação: transporte para o futuro

por | mar 1, 2017 | Blog do Geraldo Vianna

Fonte:
Chapéu:

slogan que serve de título a esta matéria foi lançado há muitos anos pelo Sindicamp (Sindicato das Empresas de Transporte de Carga de Campinas e Região), sob a presidência do amigo Valter Boscato. Tempos depois, a CNT (Confederação Nacional do Transporte) utilizou-o em diversas ações. Eu mesmo lancei mão dele em palestras que andei dando sobre o tema, que sempre foi uma das minhas maiores preocupações.

Tenho sustentado que as nossas deficiências em Educação são muito mais dramáticas do que as que temos na infraestrutura de transporte e logística. A diferença é que estas podem ser superadas, talvez em 10 anos, contados de quando tivermos recuperado algumas condições fundamentais, tais como: vontade , competência gerencial e capacidade de atrair e mobilizar recursos privados. Já a fragilidade do nosso sistema educacional vem comprometendo gerações inteiras e, mesmo com vontade política, competência gerencial e todo dinheiro do mundo, vamos precisar de uma ou duas gerações para começar a melhorar. Até lá, vamos continuar levando goleadas humilhantes nos rankings internacionais de universidades e nas “olimpíadas” de matemática, física, química etc.

Ninguém discute que é preciso promover mudanças radicais no modo como ensinamos e preparamos para a vida as nossas crianças e os nossos jovens. E aqui não estamos falando de dinheiro. O Brasil já gasta mais com educação do que muitos países ricos, embora o gasto per capita ainda seja pequeno (v., a propósito, http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/09/140908_relatorio_educacao_lab). E o salário do professor também é muito baixo: US$ 14,8 mil/ano (calculado em paridade de poder de compra), menos do que se paga na Turquia e Chile, por exemplo. E muito abaixo de países como a Suiça (que paga quase 5 vezes mais) e a Holanda (4 vezes mais).

Claro que é necessário melhorar a qualidade do ensino, o que significa ter um currículo mais adequado, melhores condições de trabalho para os professores (média de 32 alunos por classe, contra 27 no Chile e 8 em Portugal), ter mais professores, mais bem pagos. É exatamente nisso que mora a grande dificuldade. Onde conseguir professores capacitados para ensinar mais de 50 milhões de alunos? Não se pode esquecer que grande parte dos potenciais mestres provém dessas últimas gerações que vêm tendo deficiências em sua formação. Ninguém pode ensinar o que não sabe.

Essas questões, que sempre me preocuparam, voltaram a me assombrar, quando li um pequeno artigo de RUY CASTRO, sob o título “Expulsos da história” (FSP, 26/02/16, pág. A-2), que me fez lembrar que nada é tão ruim que não possa piorar. E piorar muito.

Diz ele, ao comentar a “Base Nacional Comum Curricular”, que vem sendo gestada pelo Ministério da Educação:

Se aplicada o Brasil virará as costas ao componente europeu de suas origens e abraçará com exclusividade o seu lado indígena e africano (…).

Pelas novas diretrizes, evaporam-se o Egito, berço da urbanização, do comércio e da escrita, a Grécia, do teatro, da poesia e da filosofia, e a Roma da prática jurídica, política e administrativa. Ignora-se o surgimento do judaísmo, do cristianismo e do Islã e desaparecem a Idade Média, o Renascimento e as navegações, estas só lembradas para dizer que o europeu escravizou e dizimou. A Revolução Industrial, o Século das Luzes e as conquistas científicas e tecnológicas de ingleses, franceses e americanos, tudo isso deixa de existir.

Quanto ao Brasil, todos os fatos envolvendo portugueses ou luso-brasileiros são desconsiderados. Os novos protagonistas passam a ser os ameríndios, africanos e afro-brasileiros. Bem, se os portugueses são enxotados do currículo com essa sem-cerimônia, considere-se também expulso da história se seus ascendentes forem libaneses, italianos ou japoneses – derramaram o suor em vão por um país que, agora, lhes mostra a língua”.

Não pude deixar de pensar na prática stalinista de reescrever a história, na velha União Soviética. Quem quer que caísse em desgraça perante o regime tinha o nome retirado de todos os documentos, que eram reescritos por causa disso. E tinha também a sua imagem apagada de todas as fotografias e até de pinturas. Uma trabalheira enorme, só para atender aos caprichos dos comissários, até que eles próprios também caíssem em desgraça. E assim a história ia sendo reescrita permanentemente. Se a tal “Base Nacional Comum Curricular” realmente emplacar, o Brasil vai ter de jogar fora todos os livros didáticos escritos até agora. E milhões de outros terão de ser escritos e editados. Quem sabe não se trata de uma medida anticíclica para animar o mercado editorial…

Na verdade, eu já tinha tido referência desse assunto em algum site ou rede social. Mas não dei maior importância porque a notícia me parecia tão absurda que a atribuí às maluquices da internet. Todavia, diante de um texto assinado por um dos maiores escritores brasileiros, além de jornalista de velha guarda – acostumado a apurar a notícia antes de publicá-la – e estampado em espaço nobre de um dos mais importantes jornais brasileiros, não era possível ignorar a ameaça. Mas pensei: a coisa é tão sem pé nem cabeça que amanhã deve vir um desmentido do MEC. Pois não veio até agora, dois ou três dias depois (*). Então fui pesquisar para saber o que havia de verdade em tudo isso.

Descobri que há de fato um vasto documento, elaborado por notórios especialistas da área, que, posteriormente, foi objeto de uma consulta pública, denominado “Base Nacional Comum Curricular” conhecido, nos meios técnicos, pela sigla BNCC. Ele pretende definir o currículo escolar – do curso fundamental e do médio, ano a ano, para todas as matérias obrigatórias, e não só de história – que deve ser respeitado em todo o país, no ensino público tanto quanto no particular. Em respeito às peculiaridades regionais e a outros interesses, admite-se que se possa acrescentar outros conteúdos, além do currículo básico comum que, todavia, deve representar, no mínimo, 60% do que for ministrado.

Aprendi, também, que a existência daquele documento não foi invenção de alguma mente diabólica. Menos mal. De fato, a existência de conteúdos mínimos está prevista no art. 210 da Constituição Federal (“Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. § 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”). Posteriormente, a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional” (Lei 9.394/96) regulamentou a matéria [“Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”. (Redação dada pela Lei nº 12.796/13). Por fim, a Lei 13.005/14 aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE) que, em sua Estratégia 7.1 dispôs: estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa, diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos (as) alunos (as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local.

Agora, aquele documento será revisto pelo grupo nomeado pelo Ministro da Educação para executar este trabalho, levando em conta as contribuições recebidas na consulta pública e, até abril, deverá ser encaminhado ao Conselho Nacional de Educação, para só então passar a ser de observância obrigatória, com certeza sendo implantado paulatinamente.

Li com atenção o tal BNCC, na parte referente a História. Embora tenha carregado nas tintas, talvez de propósito, para provocar reações, a verdade é que RUY CASTRO – cuja história no jornalismo e nas letras nacionais, não permite que ninguém o classifique de direitista, reacionário, “coxinha” ou qualquer coisa do gênero – tem razão quando alerta para o exagero do que se propõe. Ninguém discute que será muito saudável relativizar o caráter francamente eurocêntrico que sempre marcou o ensino de História entre nós, abrindo espaços generosos ao aprendizado da influência dos povos indígenas e africanos que, ao lado do europeu conquistador, marcaram a formação da nossa nacionalidade e da cultura brasileira em praticamente todos os seus aspectos. Mas se erramos até hoje em negligenciar essa influência, nada justifica que passemos a errar pelo oposto.

A leitura das diretrizes constantes do BNCC evidencia uma nítida tendência a minimizar a nossa filiação à civilização greco-romana, aparentemente para defender o protagonismo das vertentes ameríndias e africanas. É evidente que nada disso é neutro, mas tem um claro viés ideológico, o que não se coaduna com o estabelecimento de diretrizes de política educacional.

Se temos falhado miseravelmente em fazer com que o nosso sistema educacional transporte o país para o futuro, é nossa obrigação, ao menos, impedir que ele destrua o nosso passado, tornando o Brasil um enigma indecifrável para as gerações que nos sucederem. Isso seria um crime inominável contra a cultura brasileira.

Para impedir que ele se concretize, com certeza ninguém se animará a sair às ruas. Mas deveria.

*  *  *  *  *

(*) Este artigo já estava escrito quando, na 2ª feira, 29/02, a FOLHA estampou dois grandes artigos sobre o tema (pág. A-3): um defendendo a BNCC, de autoria de Manoel Palácios, secretário de Educação Básica do MEC, e outro criticando a iniciativa, escrito por Marcelo Rede, doutor em história pela Sorbonne e professor de história antiga da USP. Na leitura desses dois textos não encontrei motivo para alterar uma vírgula do que escrevi. Mas fica o registro, para quem quiser saber mais sobre a matéria.

*  *  *  *  *

Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.